foi um jeito de derreter em trânsito
fragmentos, ensaios e imagens do processo criativo da novela

fragmento 1:
contar história para os bichinhos da boca






Visitar sua antiga casa foi como chegar em outro país, um país novo em que na mesma hora em que eu chego eu consigo me identificar com a língua e como se olha. Não foi a primeira vez, mas agora eu vinha de fora, vinha para tentar recuperar alguma imagem nossa perdida ali.
O corpo não tem respeitado os limites do que se impôs entre nós. A escrita não tem respeitado o que existiu e o que não existiu. Você me disse: “nós não somos ricos e complicados”.
Um exercício para aparecer exige um desfazer. Ando com Simone Weil no pescoço e pergunto o que descriar significa na criação. Esta palavra colocada em seus cadernos como fragmento, depois montada e remontada. E um pouco menos de um século depois, está na cabeça de alguém que começa um livro.
Será que alguma escritora agora se levanta e lembra das suas pernas, que pesam ali embaixo, amortecidas? O que pode desamortecer uma escritora que inicia um livro?
A cabeça quase não alcança o movimento necessário do desfazer e fazer, é como se eu tivesse que separar, operar em mitose, ser uma planária, viver essas duas funções na escrita. Que sempre exige uma terceira. E entre criar e descriar, uma sombra continua, mas já não sei se é uma ou mais, na sombra existe o que não existiu, o inalcançável.
O susto de me perceber numa sala, numa roda, no abraço de uma oração que inicia a conversa do dia. Sem conselhos, sem sobrenomes, sem profissões. Apenas o desabafo, a elaboração conjunta de um desabafo, de um incômodo que nasce da própria inadequação. Estamos aqui, nesse círculo de inadequação, para encarar os dias que se impõem, os dias que impõem uma saída que o corpo não quer. Então ele luta para se fazer urgente, necessário, saudável.
O outro irrompe. Diante do rosto do outro que irrompe, nos percebemos como que intimados, convocados, chamados irresistivelmente a ser responsáveis pelo outro
Você que me convocou a abandonar meus dias para o seu cuidado, para olhar as aberturas do seu corpo que eu nunca tinha visto antes, mesmo te conhecendo desde o momento em que me tornei consciente, criadora de memórias.
A gente geralmente escreve e fala da nossa admiração e obsessão por elas. E não que isso não aconteça entre nós, mas é que acontecem outras coisas também, como a repulsa. Eu rejeito sua imposição de que eu precise olhar para as aberturas dele. Que eu precise me abrir para ele me ver. Só que nesse ato de rejeitar eu percebo que eu não pude negar, que eu não consegui falar que eu não ia parar tudo para zelar pelo seu corpo que se desfazia enquanto eu corria para compor ele de novo. Uma ação totalmente desnecessária. Uma ação na não-ação. Uma ação que espera. O livro precisa dessa espera, para que todas as peças sejam jogadas na fotografia do que vai ficar. Do que vai passar nesse caminho que é um cano, que é um beco, que é um funil, que é a casa.
Quero ficar imóvel, parada por muito tempo, até faltar imagem, faltar palavra, faltar vontade de andar atrás de algo novo. Quero isso porque quero escrever você. Acordo em alguma madrugada e fico pensando em como te contar sobre o que é chegar numa casa, te ver deitado fugindo de você mesmo. Só que me abato pelo estômago que me come por dentro, me fazendo sentir cheia antes da comida chegar. O movimento dessa imagem faz a comida invisível dentro de mim querer sair, me sinto enjoada, estou grávida de outros bichinhos.
Para contar as histórias para os bichinhos que tem dentro da boca, a personagem precisa mudar algo por fora, precisar se desfazer, precisa se desfazer toda.
Trecho em itálico do texto "Práxis místico-ética em Simone Weil: a compaixão pelo outro sentida à flor da pele", de Andreia Cristina Serrato e Waldir Souza.